sexta-feira, 26 de maio de 2017

A prostituição no coração do capitalismo


 
“A característica mais significativa do capitalismo avançado é sua globalização. E essa exigência chegou à prostituição. A globalização desativa as fronteiras para o capital e as mercadorias. E a mercadoria sobre a qual está edificada a indústria do sexo, os corpos das mulheres, não pode permanecer dentro dos limites do Estado-nação”, escreve a feminista Rosa Cobo, professora de Sociologia do Gênero na Universidade da Corunha, e coordenadora do Centro de Estudos de Gênero e Feministas nessa universidade.


Cobo enfatiza que a indústria do sexo “é pilotada pelas lógicas econômicas que governam o capitalismo global. Só isto explica os enormes esforços que estão sendo feitos para que o acesso sexual ao corpo das mulheres seja percebido como um assunto de consumo para os varões e de livre escolha para as mulheres prostituídas. O imaginário coletivo, resultado em muito boa medida das estruturas de poder patriarcais e capitalistas, oferece a imagem da prostituição como um ato livre delas e um ato de consumo deles. Dito de outra forma, as elites dominantes tentam fazer com que a prostituição seja vista como um contrato livre entre duas partes que estão igualmente interessadas em firmá-lo”.
 
Estes são fragmentos da mais recente obra de Rosa Cobo, La prostitución en el corazón del capitalismo (Catarata). Abaixo, reproduzimos o capítulo intitulado A indústria internacional do sexo, publicado por InfoLibre, 22-05-2017. A tradução é do Cepat.
 
Eis o texto.
 
A prostituição é o coração de uma indústria internacional do sexo que inclui uma grande variedade de negócios, desde grandes bordéis e locais de strip-tease até editoriais, desde casas de massagem até agências de “acompanhantes”, desde filmes até revistas sobre pornografia, sem nos esquecer das cifras do turismo sexual. A indústria do sexo não se encerra no conjunto de negócios que fazem parte do setor da prostituição, pois também outros muitos atores econômicos lucram com esta indústria e contribuem para a sua manutenção. Com efeito, diversos negócios cuja função não está diretamente vinculada com a prostituição servem a seus interesses e também se servem desta indústria para aumentar seus lucros. Entre eles, há que destacar principalmente hotéis, empresas de bebidas alcoólicas, jornais, farmácias, táxis e karaokês.
 
O que ocorreria se as empresas produtoras e distribuidoras de bebidas alcoólicas se negassem a abastecer os bordéis ou se os jornais não aceitassem publicar anúncios de locais e instalações nos quais se exerce a prostituição? O que quero destacar é que a prostituição é o eixo de todo um setor econômico que se articula em torno dos corpos das mulheres prostituídas. O centro da indústria do sexo são os corpos das mulheres, que se tornaram mercadorias sobre as quais se edificou esta indústria global. E, mais concretamente, toda esta atividade econômica se sustenta sobre a vagina e outras partes do corpo feminino, que se tornaram o fundamento de um negócio organizado em escala global.
 
Até os anos 1980, a prostituição teve impacto econômico apenas nas contas nacionais. Sua dimensão mais relevante foi a poderosa marca patriarcal sobre a qual, originalmente, se edificou esta prática social. No entanto, o surgimento do capitalismo global, a partir dos anos 1970, muda o rosto da prostituição e a torna parte fundamental da indústria do ócio e do entretenimento. Com efeito, a partir dessa época, a indústria do sexo foi se globalizando com a ajuda das redes informacionais, mas também com a contribuição de redes criminosas.
 
Há pouco mais de três décadas, a prostituição era um conjunto de bordéis com mulheres da localidade, que exerciam a prostituição com encarregadas e chefes que geriam, às vezes paternalisticamente, esses pequenos negócios.
 
Antes, existiam muitos “clubes de strip” pequenos. Eram lugares íntimos, quase familiares. Agora, são cada vez menos, e os que restam têm vivido uma transformação radical, tanto na forma como na maneira de funcionar. Os pequenos clubes, em sua maioria, estão desaparecendo, substituídos pelos grandes espaços de strip-tease com show-girls e garotas se exibindo, com a mínima roupa possível. São negócios que às vezes, inclusive, funcionam com licença de hotel... Os pequenos locais onde tantas mulheres exerciam de maneira mais ou menos discreta uma forma de prostituição light, porque não apenas não era obrigada a se deitar com os clientes, como também podia ganhar muito dinheiro sem necessidade disso, são já coisa do passado.
 
Nessa antiga forma de prostituição, não existiam apenas mulheres migrantes, nem tráfico de mulheres para a exploração sexual, nem circuitos criminosos. Em outros termos, esse velho cânon da prostituição correspondia ao capitalismo prévio ao neoliberalismo e, por isso mesmo, sua dimensão mais relevante era a patriarcal.
 
O novo cânon da prostituição só pode ser explicado no marco de três sistemas de domínio: o patriarcal, o neoliberal e o racial/cultural. Com efeito, varões de todas as classes sociais acessam sexualmente aos corpos de mulheres pobres, migrantes e pertencentes a culturas, raças e regiões do mundo que o Ocidente etnocêntrico conceitualizou como inferiores. Este é o rosto que oferece a prostituição nos países com altas taxas de bem-estar. Naqueles países com índices de pobreza significativos, pode variar o componente cultural ou racial no consumo interno de sexo, mas permanece invariável a exploração sexual das mulheres por varões de todos os estratos sociais.
 
Assim “como em todo fenômeno de prostituição, as minorias étnicas e nacionais são sobreexploradas”. Varões de seus próprios países, de regiões próximas e de países ocidentais vêm para comprar sexo barato de mulheres que necessitam de recursos para sobreviver. Embora a marca de classe tenha estado presente na prostituição anterior à globalização capitalista, nesta época de crescente mercantilização dos corpos das mulheres, a pobreza e a extrema pobreza das mulheres, ou seja, a hierarquia de classe, adquiriu uma dimensão que não tinha no passado.
 
A globalização econômica tornou possível que a prostituição se converta em um lugar de intersecção entre o norte e o sul, pois o sul exporta mulheres para consumo sexual dos varões do norte. E os homens do norte viajam para países do sul para comprar sexo e exercer o direito patriarcal que lhes autoriza a usar sexualmente as mulheres no marco da prostituição. Esta indústria conecta o norte rico e o sul endividado. E, além disso, contribui para criar uma nova afiliação entre os varões do norte e os do sul. Com mais ou menos recursos, os varões ocidentais compartilham com os do restante do mundo a possibilidade de usar sexualmente as mulheres que o capitalismo neoliberal e os distintos patriarcados situaram nesses lugares delimitados para satisfazer o desejo masculino. Inclusive, em alguns países em que a prostituição foi legalizada, os demandantes não só acreditam ter o direito de usar sexualmente as mulheres prostituídas, como também possuem esse direito consagrado por lei. A cartografia global da prostituição mostra varões dos países centrais cruzando regiões e até mesmo continentes para ter acesso a corpos de mulheres e meninas de outras raças e culturas que só possuem o seu corpo para sobreviver. São deslocamentos pontuais dos demandantes de prostituição para comprar sexo barato, racializado e, muitas vezes, infantil.
 
A teoria feminista propôs a necessidade de estudar a política sexual de todas as instituições para compreender as lógicas patriarcais que habitam em seu interior. Neste sentido, a política sexual da prostituição demonstra sociologicamente o caráter interclassista dos demandantes e a composição feminina e sem recursos daquelas que exercem a prostituição. A lógica patriarcal e a lógica de classe se fundem na prostituição.
 
A característica mais significativa do capitalismo avançado é sua globalização. E essa exigência chegou à prostituição. A globalização desativa as fronteiras para o capital e as mercadorias. E a mercadoria sobre a qual está edificada a indústria do sexo, os corpos das mulheres, não podem permanecer dentro dos limites do Estado-nação. Principalmente, porque essa “mercadoria” diminui nas sociedades de bem-estar e há muitas disponíveis nos países com altas taxas de pobreza. O que quer dizer é que a globalização da indústria do sexo exige que os corpos das mulheres possam ser deslocados de seus países de origem e sejam transferidos a países em que a demanda não se cobre.
 
O tráfico, o turismo sexual e o negócio das esposas que são compradas por correio garantem que a severa desigualdade das mulheres possa ser transferida para além das fronteiras nacionais, de maneira tal que as mulheres dos países pobres possam ser compradas com fins sexuais por homens dos países ricos. O século XX viu o fato dos países ricos prostituírem as mulheres dos países pobres como uma forma de colonialismo sexual.
 
Como afirmava no primeiro capítulo, seguindo a análise de Saskia Sassen, uma característica fundamental do capitalismo global é a lógica de expulsões que coloca em funcionamento para conseguir, em pouco tempo e sem economias produtivas, alguns níveis de lucros impensáveis. Deste ponto de vista, as mulheres prostituídas não só representam uma das grandes expulsões do século XXI, como também são submetidas às mesmas regras que outras mercadorias para o consumo. A prostituição é assim o máximo expoente do deslocamento neoliberal, pois as mulheres são transferidas dos países com altos níveis de pobreza para os países com mais bem-estar social, para que os varões demandantes de todas as classes sociais acessem sexualmente os corpos dessas mulheres. O corpo das mulheres prostituídas se torna uma mercadoria muito cobiçada pelos traficantes e cafetões, porque proporciona altos lucros com baixos custos. Esta forma de funcionamento do capitalismo, o deslocamento da produção menos qualificada a países com poucos direitos trabalhistas e altas taxas de pobreza, estendeu-se às mulheres prostituídas.
 
No entanto, esta condução de mulheres para a indústria do sexo tem elementos que a convertem em uma autêntica expulsão. São mulheres expulsas de sua condição de cidadã, de seus contextos culturais, de seus ambientes familiares e de seus projetos de vida. São expulsas de seus espaços físicos e emocionais. Quando chegam aos destinos projetados, já são seres sem história; ninguém as conhece aqui e precisam negar o que são lá, em seu país de origem. Pelo caminho, aprenderam a ocultar sua história e, em muitas ocasiões, sua língua, como condição de possibilidade para adotar a nova identidade que lhe é oferecida, a de mulher prostituída.
 
A prostituição, como dissemos anteriormente, possui três marcas, sem a identificação das quais não é possível a compreensão desta realidade social: a patriarcal, a capitalista neoliberal e a cultural/social. Na intersecção destes três sistemas de poder cresceu a indústria do sexo e os consumidores de prostituição aumentaram tanto como o número de mulheres com o qual este negócio global se alimenta. No momento atual, a estrutura que sustenta esta indústria é pilotada pelas lógicas econômicas que governam o capitalismo global. Só isto explica os enormes esforços que estão sendo feitos para que o acesso sexual ao corpo das mulheres seja percebido como um assunto de consumo para os varões e de livre escolha para as mulheres prostituídas. O imaginário coletivo, resultado em muito boa medida das estruturas de poder patriarcais e capitalistas, oferece a imagem da prostituição como um ato livre delas e um ato de consumo deles. Dito de outra forma, as elites dominantes tentam fazer com que a prostituição seja vista como um contrato livre entre duas partes que estão igualmente interessadas em firmá-lo.
 
Se, como afirmamos, a prostituição se encontra na confluência de três sistemas de poder, o capitalista, o cultural/racial e o patriarcal, o próprio título deste capítulo [A indústria internacional do sexo] é em si mesmo uma proposta de como esta prática social deve ser interpretada. Com efeito, a prostituição é uma indústria essencial para a economia capitalista, para a economia criminosa, para os estados que veem nesta instituição uma fonte de receita pública, mas também para instituições do capitalismo internacional, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que veem no que definem como indústria do entretenimento e do ócio algumas receitas que podem garantir a devolução da dívida. Poulin afirma que “o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e os planos de ajuste estrutural propõem empréstimos aos estados para desenvolver empresas de turismo e entretenimento”.

Fonte: Ihu

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