segunda-feira, 1 de junho de 2015

Dia internacional da prostituta: de olho em Lyon, onde tudo começou


Trabalhadoras sexuais do mundo todo estão reunidas desde este domingo em Lyon, na França, nos Encontros Internacionais dos Trabalhadores do Sexo, organizados pelo sindicato francês Strass. São dois dias de reuniões, debates, palestras e workshops, seguidos de uma manifestação convocada para terça-feira, dia 2, diante da igreja de Saint Nizier.

 
Essa manifestação será muito importante. Desde 1975, 2 de junho é o Dia Internacional da Prostituta. A data comemora a ocupação da igreja de St. Nizier, no centro de Lyon, por cerca de cem trabalhadoras sexuais que protestavam contra a repressão policial. Aquele protesto histórico foi tema de documentário produzido por Eurydice Aroney e Julie Beressi.

Como disse neste sábado o jornal Le Progres: “Passaram-se 40 anos. Em 2 de junho de 1975, as prostitutas lionesas invadiram a igreja de St. Nizier, situada no coração da Presqu’île, entre a praça dos Terreaux e a dos Jacobinos, para protestar contra as prisões de que eram vítimas. Elas eram cerca de cem, e ocuparam a igreja por dez dias.”

Quem conta em detalhes os acontecimentos que levaram à ocupação da igreja é Maggie McNeill, no blog The Honest Courtesan:

“Em 1974, as putas francesas estavam fartas; a polícia, como sempre, não havia feito nada sobre o assassinato e a mutilação de duas prostitutas em Lyon, de modo que um grupo de putas e apoiadores (que incluíam advogados e jornalistas) convocaram uma reunião de protesto para exigir o fim das várias leis antiprostituição e da repressão policial que colocava suas vidas em perigo por obrigá-las a trabalhar em áreas escuras e de pouco tráfego. A polícia reagiu assediando os manifestantes com três ou quatro multas por dia, e as autoridades do fisco francês fizeram estimativas ridículas do número de clientes que cada trabahadora manifestante atendia, e lhes apresentou contas de impostos que excediam toda a renda delas. Quando elas apareceram na TV para dizer ao público o que estava acontecendo, foram condenadas à prisão à revelia, por causa das multas e dos impostos não pagos. Reconhecendo que era necessária uma ação dramática, na segunda-feira, 2 de junho de 1975, um grupo de mais de cem prostitutas ocupou a igreja de St. Nizier, em Lyon, com a cooperação do padre. Elas penduraram uma enorme faixa na frente da igreja, declarando “Nossas crianças não querem suas mães na prisão.”


A solidariedade das mulheres de Lyon
 
“Quando o governo reagiu com a ameaça de tomar suas crianças se elas não fossem embora imediatamente, houve uma indignação púbica; muitas mulheres de Lyon juntaram-se a elas, de modo que os policiais não tinham como dizer quais delas eram as prostitutas. Além disso, o ‘submundo’ de Paris enviou uma delegação para ajudá-las, grupos ocuparam igrejas em outras partes da França e uma ‘greve de prostitutas’ foi organizada em várias províncias.”
 
Quem nos fala agora é o NSWP (Rede Global de Projetos de Trabalho Sexual): “Em muitas outras cidades, as trabalhadoras sexuais imitaram o movimento e igrejas foram ocupadas em Paris, Marselha, Grenoble, Saint Etienne e Montpellier. O governo finalmente decidiu agir e as trabalhadoras sexuais foram brutalmente expulsas das igrejas pela polícia na manhã de 10 de junho. Ulla, a líder do movimento, teve seu nome verdadeiro revelado e fotos dela foram publicadas na imprensa. O ministro do Interior as acusou de serem manipuladas por cafetões, enquanto a ministra dos Direitos das Mulheres declarou que não tinha competência para tratar do assunto. O governo recusou qualquer forma de negociação e, em vez disso, encomendou um relatório que foi ignorado quando publicado, em dezembro de 1975.”
 
Os detalhes são de Maggie McNeill: “O protesto continou por uma semana e terminou de modo previsível: às 5h30 da terça-feira, dia 10 de junho, policiais enganaram o padre e o fizeram destrancar uma porta, que abriram à força, o que permitiu que dezenas de jagunços com equipamento militar invadissem o prédio. Todas as putas ocupantes foram espancadas e presas, e ações similares foram executadas naquele dia e nos dias seguintes em todos os locais de protesto; na sexta-feira 13, tudo estava terminado.”
 
“Mas se as ‘autoridades’ imaginavam que a repressão brutal a um protesto pacífico ensinaria a lição que elas pretendiam, estavam tristemente enganadas; as putas começaram a manter reuniões regulares e logo formaram o Coletivo Francês de Prostitutas, no qual o Coletivo Inglês de Prostitutas se baseou mais tarde. Mulheres em vários países também se inspiraram e formaram grupos, e algumas delas se juntaram ao grupo Coyote, de Margo St. James, para formar o Comitê Internacional Pelos Direitos das Prostitutas (ICPR), a organização cujo trabalho e exemplo ajudaram a obter reformas das leis de prostituição em vários países europeus e deu um exemplo que inspirou campanhas semelhantes em muitos outros países.”

Gênese da mobilização
 
A socióloga Lilian Mathieu, da Sorbonne (Universidade de Paris-1), examinou em detalhes os acontecimentos que levaram ao movimento de 1975. Como tudo mais nesta história, há lições aí que podem ser aproveitadas:
 
“Embora tenha sido de longe a mais espetacular e famosa, a ocupação de St.Nizier pelas prostitutas de Lyon não foi a primeira ação coletiva delas. Três anos antes, elas haviam estado envolvidas em uma manifestação abortada, cuja memória desagradável pesaria bastante em suas opções táticas quando elas decidiram agir novamente, em junho de 1975. Essa primeira tentativa de mobilização merece menção, primeiro porque representa uma fase significativa no desenvolvimento da dinâmica de protestos que acabaria resultando na ocupação da igreja; segundo, porque dá o tipo de demonstração ativa da dominação política à qual as prostitutas são submetidas e ao julgamento comum de que elas são politicamente ilegítimas.”



“Em agosto de 1972, o mercado de prostituição de Lyon foi abalado por um escândalo envolvendo vários políticos e policiais locais. Depois de uma série de denúncias anônimas, as atividades ilícitas de vários policiais da ‘brigada do vício’ foram publicamente reveladas e os acusados, rapidamente acusados e presos. Os oficiais – membros do serviço público francês, devemos lembrar – foram acusados de receber ‘envelopes’ dos gerentes dos hotéis usados por prostitutas em troca de ‘proteção’ policial, e até mesmo, em alguns casos, de comprar tais estabelecimentos com a ajuda de corretores de imóveis cúmplices; revelou-se que outros policiais eram cafetões, que coletavam o faturamento de prostitutas que trabalhavam diretamente para eles. O caso também tocou vários políticos locais ligados ao partido UDR que eram suspeitos de ligações com o crime organizado local (o ‘milieu’) e de dar proteção aos operadores das ‘maisons closes’ (bordéis) de Lyon. O representante parlamentar do quarto distrito da cidade foi colocado em uma situação particularmente delicada, com a descoberta de suas conexões especiais com o mantenedor de uma casa para encontros clandestinos conhecida por ter uma clientela de elite.”
 
 “Para as cerca de 400 prostitutas que atuavam na cidade naquela época, a limpeza das relações entre polícia e o ‘milieu’ significava o fechamento dos hotéis em que elas trabalhavam. Embora esses estabelecimentos fossem proibidos por lei, havia um bom número deles na ‘área da luz vermelha’ do centro de Lyon no começo dos anos 1970, e eles eram relativamente prósperos. Frequentemente eles eram administrados por ex-prostitutas que recebiam uma parte da renda das mulheres que usavam o hotel. Para as últimas, o arranjo dos hotéis havia funcionado bem: elas tinham uma autonomia relativa dentro do estabelecimento usado; eram livres para escolher suas horas e ritmo de trabalho; o pagamento pelo quarto era claramente separado do pagamento pelo trabalho (ao contrário da situação nas ‘maisons closes’, onde o cliente pagava ao operador uma taxa geral, do qual a prostituta recebia apenas uma porcentagem); e o mais importante, as condições de higiene e segurança eram consideradas satisfatórias.”
 
“Portanto, o fechamento dos hotéis prejudicou seriamente a prática das prostitutas e representou uma ameaça à sua segurança; foi o descontentamento com essa situação que levou à sua primeira tentativa de ação coletiva. Na noite de 24 de agosto de 1972, aproximadamente 40 mulheres fizeram uma reunião informal na Place des Jacobins, perto da principal ‘área da luz vermelha’ do centro. Apesar de sua dispersão rápida pela polícia, elas conseguiram convocar um protesto – na forma de uma manifestação – para o dia seguinte. Foi um fracasso funesto. Ao meio-dia de 25 de agosto, na mesma Place des Jacobins, apenas cerca de 30 prostitutas apareceram; sem dúvida as outras haviam sido dissuadidas pelo fato de que uma manifestação como essa exigiria a afirmação pública de seu status fora das ruas estreitas onde elas geralmente trabalhavam. Mas o que foi mais eficaz para prejudicar o movimento foi a falta de reconhecimento do direito das prostitutas de usarem esse método de ação para expressar seu descontentamento. As mulheres planejavam marchar até a Prefeitura para apresentar suas reivindicações. Sua passeata, anunciada pela imprensa local em tons jocosos, em sua maioria, atraiu uma multidão de curiosos, reunidos como que para ver um show. A inexperiência e a clara falta de habilidade das prostitutas para praticar essa forma de ação deram à polícia tudo o que ela precisava para torná-las objeto de ridículo: os oficiais que haviam se apresentado como voluntários para liderar uma delegação das manifestantes até uma reunião com o prefeito na verdade as levaram para a delegacia central de polícia, onde elas foram mantidas sob custódia por várias horas. A cobertura da imprensa local também expressou um senso geral de ilegitimidade das prostitutas, estigmatizando as manifestantes pelo fato de elas terem sido politicamente ingênuas e ironizando sobre a pretensão vã e ridícula de quererem ser ouvidas ‘como todo mundo’. O artigo publicado no dia seguinte pelo principal jornal local destacava a ‘novidade total’ do ‘espetáculo’ que a multidão de moradores de Lyon havia testemunhado e ‘não queria perder’. Ele também falou na futilidade da tentativa das prostitutas de comunicar-se com a população em geral: é claro que foi ‘audacioso’ da parte ‘dessas senhoras’ tentar explicar ‘suas pequenas misérias’. Enquanto isso, a caricatura do cafetão também foi mobilizada, como se para fazer a imagem se adequar melhor aos estereótipos, e ao mesmo tempo permitir que a imprensa introduzisse a suspeita de que as reivindicações das prostitutas não fossem bem fundadas, já que as mulheres estavam, provavelmente, sendo ‘manipuladas’.”
 
Cenas familiares para as trabalhadoras sexuais de todo o mundo, envolvendo policiais corruptos, políticos, jornalistas e uma comunidade “educada” durante séculos para perpetuar o preconceito e o estigma contra trabalhadores sexuais. O belo estudo de Lilian Mathieu está publicado na Revista Francesa de Sociologia, tanto em francês como em inglês.


Em 2015, pouca coisa mudou



Neste sábado, o jornal Lyon Capitale publicou reportagem sobre os eventos e o protesto organizados pelo Strass: “Quarenta anos mais tarde, as prostitutas Lyon exigem um fim à repressão do trabalho sexual. ‘Revogação do delito de solicitação e retirada do projeto de lei de penalização clientes.’ ‘Criminalizar os clientes penaliza as trabalhadoras diretamente, porque menos clientes significa menos receita.’ De acordo com o Strass, essa lei incentiva as prostitutas a trabalharem em locais menos iluminados, menos visíveis e, portanto, torna-as mais vulneráveis. Elas também pedem ‘a regularização de prostitutas em situação irregular e melhoria da ajuda social’ e ‘a revogação das leis sobre contratos’, que podem criminalizar as prostitutas: ‘Se duas trabalhadores sexuais alugam um quarto para compartilhar seu trabalho, elas são consideradas cafetinas uma da outra.'”
 
Em separado, vamos publicar em português o manifesto do sindicato Strass (“Saint Nizier 1975-2015: 40 Anos de Lutas”) e o programa do encontro. Para dar mais água na boca: a entidade de saúde comunitária Cabiria, de Lyon, organizou uma exposição sobre os acontecimentos de 1975. As fotos em preto-e-branco, feitas durante a ocupação de St. Nizier, são da cineasta feminista Carole Roussopoulos (1945-2009), fundadora do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir.
 
Mundo Invisível pretendia enviar representantes ao encontro de Lyon, para que pudéssemos aprender alguma coisa com as companheiras do movimento internacional, mas não deu. Ainda estamos engatinhando… Mas chegaremos lá.

Fonte: http://www.mundoinvisivel.org/

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