Próximas a comemorar
os 115 anos da morte de Antônia Maria da Misericórdia, de sua Páscoa no dia 28
de fevereiro, estamos convidadas (os) a dar um mergulho e assim aprofundar no
jeito dela fazer história. Mas uma história, como argumentam os/as teólogo(as)
da libertação, que se escreve ou se constrói a partir de um determinado lugar
social, e assim poder perceber as mudanças que na pessoa de Antonia foram
acontecendo.
Nesse intuito,
apresentamos o histórico de Antonia numa versão popular, muito simples. Este
histórico tem quatro etapas bem diferenciadas: a Infância, a Adolescência, a
Juventude e a Terceira Idade.
Entretanto, ficar
numa cronologia baseada só nisso que chamamos de tempo como categoria
filosófica, não teria muito sentido. Tentamos, sobretudo, ressaltar fases de sua
vida onde ela foi construindo-se como sujeito. Nesse sentido queremos trazer a
tona uma expressão de Paulo Freire: “A “humildade” é uma virtude revolucionária.
Ser humilde significa aceitar-se como ser histórico, como ser inacabado, aceitar
participar coletivamente da construção da história1”. E intuímos que Antonia aceitou esse desafio
ao longo de sua caminhada com algumas certezas, como a certeza nesse Deus que
constituía não só a bússola de sua vida senão como o companheiro na estrada do
dia a dia que lhe vai mostrando outros roteiros a partir da realidade
sócio-política e eclesial onde ela estava inserida. Aquele que lhe fez virar a
concepção desse sagrado, de um Deus que estava no Convento de Clausura: o Deus
do intimismo, da tranquilidade, do silêncio, da música gregoriana embora muito
importante por certo, ao Deus presente nas mulheres que estão na prostituição:
“Quero que minhas filhas vejam nelas a imagem do Redentor”. Com tudo o que
carrega este grupo social de estigma, preconceito, discriminação, dupla moral e
hipocrisia da sociedade.
Experimentar a Deus
com o pé nesta realidade lhe faz mudar a sua maneira de se comprometer na
construção como sujeito com outras não consideradas como tais. Nesse sentido,
Antonia teve que fazer todo um processo de desconstrução desse imaginário que
tinha acerca das mulheres da prostituição.
Vejamos: Antônia
diante do primeiro convite do Padre Serra a solidarizar-se com as mulheres só
consegue se comprometer à distância: “Vossa Excelência e eu podemos trabalhar de
modo indireto. Eu darei meu dinheiro e farei o que possa, ainda que me repugne.
Falei com meus tios e se opõem abertamente. Não lhes parece bem eu tome a
decisão de tratar diretamente com essa “classe de mulheres2”
Antonia precisou pisar no seu próprio chão,
sentir sua realidade através de todos seus sentidos, precisou da compaixão:
sentir com; e da simpatia, do grego sem pathos: sentir junt@s. E uma vez feita
esta experiência ela descobre o que faz a diferença.
Ela não sente, não vê
ou experimenta o mesmo ao aproximar-se ao hospital e às ruas quanto à realidade
das mulheres, que o que sente estando no palácio, na tarefa de educadora das
princesas. Este é o lugar social do poder e da distância. Estava num lugar de
superioridade e ainda não estava disposta a perder privilégios, nem a tolerar a
discriminação posta sob as mulheres. E menos ainda, suportar de graça a exclusão
por compartilhar com as mulheres ou sentir-se incluída dentro de um setor social
submetido a inúmeros vexames e preconceitos. Um setor que não dá “marketing” , e
do qual custa pensar que está integrado por pessoas humanas, cidadãs que são
iguais a nós, ainda que em situação diferente. Para isto é necessário uma
experiência profunda de misericórdia, solidariedade e de consciência política no
sentido amplo da palavra.
Mas Antonia animou-se
a romper com o palácio, com o lugar de poder, com a “neutralidade” e pôs sua
casa entre este grupo de mulheres. Deu também um salto qualitativo: de vê-las e
senti-las com repulsa, descobre que são pessoas humanas e ainda mais, algo assim
como uma heresia ético-teológica para seu tempo e talvez para o nosso: Graça de
Deus. “As mulheres prostituídas são a graça de Deus”. Desde esta mudança de
lugar social, desde essa experiência de êxodo, a partir da desconstrução das
crenças, de seu imaginário no que diz respeito da realidade das mulheres em
prostituição, Antonia chega a se identificar com o princípio da misericórdia:
“Amarás ao próximo/a como a si própria”.
Agora pode afirmar com certeza que são suas próximas. “Eu amei muito a
todas com verdadeiro carinho de mãe e continuarei fazendo o mesmo por toda
eternidade (Testamento de Madre Antônia)
Antonia ao deixar-se
tocar pela realidade das mulheres se faz próxima das mulheres em prostituição,
cria de mãos dadas com elas, um espaço onde possam sentir-se e perceber-se como
pessoas, sujeitos históricos, conquistando sua voz e sua vez dentro da sociedade
e das Igrejas. E não presas da humilhação e da culpa de herança milenar que é
bem diferente da humildade da qual, Paulo Freire, faz questão. Antonia como
participante ativa da construção coletiva da história, foi vivenciando cada
etapa de sua vida, se foi empoderando como mulher, fazendo opções algumas mais
livres e outras talvez condicionadas pelo contexto familiar, social, cultural,
político e eclesial. Antonia no seu percurso histórico, na travessia das fases
de sua vida, demonstrou quanto é importante
desenvolver sua capacidade de resiliência no meio das adversidades
inerentes à condição humana, desabrochando a cada instante e desenvolvendo sua
enorme capacidade criativa que se refletiu na sua abundante produção literária,
sua expressão artística, sua qualidade humana nas relações de amizade, de
sororidade e fraternidade, sua luta política, sua maturidade até poder dizer
ecoando as palavras de Leonardo Boff, em uma entrevista ao completar seus 70
anos: “a velhice é uma oportunidade que Deus e a vida me oferecem para concluir
o que um dia começou: a plasmação de minha própria vida para que ela chegue a
certa plenitude a semelhança de uma fruta que deve madurar para ser recolhida
para o festim do Senhor... e com um caminho não para o fim, mas para a Fonte de
perene juventude divina.”
*Texto adaptado e
redigido por Ir. Manuela Rodriguez - OSR
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